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Profissão: Voltar vivo
Assim como os Fazedores de Chuva, os fotógrafos têm a alma inquieta. Alguns são ainda mais inquietos e buscam o combate e o conflito para protagonizar suas fotografias. Eles são os profissionais que vivem uma procura constante por aquela curva mais fechada, por aquela estrada mais íngreme, por aquele ponto mais alto.
Segue abaixo uma reportagem da Revista Trip muito interessante e que promove a reflexão dos leitores:
"Profissão: Voltar vivo
Lourival Sant’Anna*, correspondente de guerra do Estadão, escreve sobre a estranha vocação que move fotógrafos a extrair arte e beleza de zonas de conflito. E mergulha na rotina de fotógrafos como André Liohn e Maurício Lima
Passava das dez da noite e eu estava cada vez mais inquieto, enquanto escrevia minha matéria no “centro de imprensa” improvisado num salão do hotel El-Fadeel, em Benghazi. Os fotógrafos Paulo Nunes dos Santos e David Sperry tinham ido naquela manhã para o front em Ajdabiya, 160 quilômetros a oeste, e já deveriam ter voltado. De repente, Paulo, um português de 34 anos radicado na Irlanda, surgiu na entrada do salão. Nossos olhares se cruzaram. Olhei para os lados e não vi David. Então entendi sua expressão de desespero. Levantei e fui correndo até ele.
“O David ficou nas dunas”, disse ele. “Na verdade, não sei o que aconteceu com ele. Quando escureceu, o motorista me chamou e disse que ia embora imediatamente. Eu disse que tinha de encontrar o David primeiro. Ele disse que se eu não viesse com ele já, ele voltaria sozinho. Eu não tinha outra saída a não ser voltar.”
Passaram-se duas longas horas. Até que David, um americano de origem coreana, 28 anos, apareceu na entrada do salão. “Voltei num ônibus para rebeldes que não têm carro para ir lutar”, contou ele sorrindo. Eu não sabia se ficava bravo ou feliz. Paulo e David já tinham nos passado um susto poucas noites antes, quando foram atacados por franco-atiradores à caça de jornalistas, ao cruzar do nosso hotel, o único com internet, para o hotel onde dormiam, a 500 metros dali. Os dois se jogaram no chão e viram uma granada cair na calçada perto deles, mas ela falhou.

Foto de David Sperry
David mostrou as fotos no monitor de uma das três câmeras cobertas de areia que ele trazia penduradas no pescoço. Os projéteis disparados pelos tanques das forças leais ao regime líbio enchiam todo o quadro de algumas das imagens, como bolas de fogo que brilhavam na escuridão. David usava lentes normais. Para fazer aquelas fotos, ele tinha estado absurdamente perto dos tanques. Lembrei da frase de Robert Capa, o húngaro que praticamente fundou a fotografia de guerra com sua cobertura da Guerra Civil Espanhola: “Se suas fotos não estão boas o suficiente, você não está perto o suficiente”.
Estive com Juca Varella no Iraque, Jonne Roriz no Haiti, Armando Favaro no Irã, Evelson de Freitas na África do Sul, Dida Sampaio na Rússia, Wilson Pedrosa em Honduras, porém costumo partir sozinho nas minhas andanças, e isso inclui as guerras. Mas convivo muito com fotógrafos, que muitas vezes também andam desacompanhados nessa experiência essencialmente solitária – o que pode ser mais solitário que o convívio com a morte? – que é a cobertura de guerra.

Foto de Paulo Nunes dos Santos
Fotografo e gravo tantos vídeos que, quando a revista Trip me ligou para falar desta matéria, já ia explicando que não sou fotógrafo de guerra, até entender que eu seria o autor, não um entrevistado. Estou tão absorto no ofício de contar histórias que não vivo mais as diferenças entre escrever, falar, fotografar e filmar. O fotógrafo brasileiro André Liohn, vencedor deste ano da Medalha de Ouro Robert Capa, o mais importante prêmio da fotografia de guerra, também se preocupa mais com a história que com sua identidade de fotógrafo: “Minha fotografia é só uma desculpa para eu estar ali, participando daquilo tudo e de alguma forma opinando sobre aquilo que está acontecendo”, disse André em abril ao programa Roda viva, da TV Cultura. “E, se posso participar de forma mais ampla fotografando e filmando ao mesmo tempo, melhor ainda. Gravo vídeos em situações que vejo que o filme conta melhor a história.”
André, 39 anos, vive com a mulher e dois filhos pequenos em Ariano Irpino, na Itália. Cruzei com ele uma vez no Haiti e duas na Líbia, e estivemos simultaneamente em vários outros países. No momento, está na Síria, para a revista alemã Der Spiegel.
Direto de Cabul
Não há um perfil uniforme dos fotógrafos de guerra. Maurício Lima, hoje o mais atuante fotógrafo de guerra brasileiro, ao lado de André, tem uma vivência diferente na questão multimídia: “Não consigo pensar em duas coisas ao mesmo tempo. Fotografar já é suficientemente difícil”, escreveu Maurício, que respondeu minhas perguntas por e-mail, de Cabul, onde está cobrindo o conflito do Afeganistão para o jornal The New York Times.
“Ninguém gosta de cobrir conflitos”, diz Maurício, 37 anos, solteiro, que teoricamente mora em São Paulo, mas passou oito dos 12 meses de 2011 viajando a trabalho. “É necessário e fundamental. É uma vertente na fotografia que, se bem executada, pode servir de agente transformador e de denúncia na vida das pessoas porque mexe com a emoção, o sentimento, a sensibilidade do fotografado e do fotógrafo.”
Maurício usa lentes 50 mm (normal) e principalmente 35 mm (grande-angular), que o obrigam a estar muito, mas muito próximo da cena. Ele vê a proximidade como necessária não só do ponto de vista técnico, descrito por Robert Capa, mas da compreensão e do sentimento do que se passa: “Para isso, você precisa estar perto, respirar aquele sentimento que não deixa dúvida sobre a que você veio. Mas isso depende essencialmente da dedicação e da perseverança do fotógrafo, daquilo em que ele acredita. Sou inquieto, curioso, de uma certa forma inconformado com muito do que já testemunhei até agora. As pessoas querem saber com mais profundidade se aquilo ainda existe, de que forma e por que nas suas nuances mais particulares. É uma fotografia ambígua que, ao mesmo tempo que diz que isso aconteceu ou acontece, quer dizer na verdade que isso não deveria acontecer novamente, ou que deveria parar de acontecer imediatamente”.

Foto de Maurício Lima
Sobre os conteúdos emocionais que se acumulam no peito do correspondente de guerra e o encorajam a encarar a morte, Maurício fala em inconformismo e André, em revolta: “A revolta me levou a cobrir guerra. Quero expressar na fotografia o momento de trauma. A vida da pessoa vai ter que mudar. A pessoa vai ter que tomar decisão sobre pra que lado ela vai. A vida como era até então não vai existir mais. A pessoa que vê essa foto, espero que também se relacione com esse momento de trauma e diga ‘não vi isso antes, não senti isso antes’. Não é chocar. É ter consciência de que a vida tem que tomar direção nova. Me identifico com toda pessoa que se insatisfaz com a realidade e quer mudar isso”.
À pergunta sobre se é “viciado em adrenalina”, André responde: “De jeito nenhum. Eu dirijo devagar”. Maurício: “Sou viciado em distintas culturas, etnias, credos, na paixão por contar histórias das vidas das pessoas afetadas direta e indiretamente por conflitos, em usar a fotografia como canal de voz para comunidades e grupos de pessoas esquecidas pelo noticiário nos lugares mais remotos do planeta, por documentar as transformações do mundo moderno com maior profundidade. Isso é o que me move como ser humano e como fotógrafo”.

Foto de André Liohn
Num simbolismo do quanto suas imagens são impulsionadas por sentimentos que vêm de dentro deles, ambos os fotógrafos têm problemas de visão.
Como todo correspondente de guerra, André e Maurício tiveram experiências que os marcarão para sempre. De todos os tipos. Durante a batalha de Misrata (Líbia), em abril do ano passado, um morteiro caiu no local onde André cobria o resgate de escudos humanos pouco tempo depois de ele sair de lá, matando os fotógrafos Tim Hetherington e Chris Hondros e ferindo Guy Martin e Michael Christopher Brown. Por falta de eletricidade para refrigeração, não havia meio de manter os corpos ali, e os médicos do hospital de Misrata perguntaram a André o que deviam fazer com eles. André não tinha contato com suas famílias nem empregadores. O jeito que encontrou foi anunciar a situação no seu Facebook, mesmo sabendo que as famílias se chocariam com a notícia. Rapidamente a Getty Images, para a qual ambos os mortos trabalhavam, entrou em contato, e André apagou o texto do Facebook.
Maurício fez um ensaio fotográfico com Ayad Ali Brissam Karim, um menino iraquiano que perdeu a visão do olho direito e ficou somente com 20% da do olho esquerdo. Ayad foi obrigado a deixar a escola porque sofria bullying devido aos ferimentos de queimadura no rosto. Maurício encontrou o menino e seu pai nas ruas de Bagdá, quando pediam ajuda com um prontuário médico em mãos. “Quase dois anos mais tarde, soube através de uma editora da revista Time que esse ensaio havia sido publicado à época no The Washington Post, e que uma família americana se sensibilizou, foi ao Iraque em busca de Ayad e o levou para tratamento de córnea nos EUA”, conta Maurício. “Essa história mexeu profundamente comigo antes mesmo de saber das consequências. Fez pensar que valeu a pena o comprometimento por documentar a guerra do Iraque, que foi a maior vergonha ocorrida nas últimas décadas.”

Foto de Maurício Lima
Ser fotógrafo de guerra é viver confrontado com a própria impotência diante da barbárie e da morte. Mas é também, em um dia de sorte, fazer a diferença em uma vida que seja".
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Haja coragem para esses Valentes!
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Adriano Gambarini, da National Geographic Brasil, é um fotógrafo reconhecido mundialmente. Com muita paciência, curiosidade e dedicação, ele consegue fotos raras. Para ele, o segredo de uma boa fotografia está na luz. Acompanhe a matéria completa publicada na National Geographic Brasil.
Adriano Gambarini: 'Fotografia é entrega, luz e respeito'
O que faz uma pessoa se dispor a aguentar 40 horas pendurado a 30 metros de altura, debaixo de uma pesada e sufocante lona verde, para fotografar um pato-mergulhão fêmea com os filhotes em não mais de 3 minutos? E suportar 20 horas sem água, comida ou pausa para urinar “apenas” para tirar fotos do raro cachorro-vinagre? Para a maioria das pessoas, a vida profissional de Adriano Gambarini desperta, no mínimo, curiosidade.

Foto de Adriano Gambarini
A voz tranquila, quase um afago, traduz sem pudores seu âmago aberto. Nele, espaço e tempo são dimensões flexíveis, adaptáveis às condições ambientes – as necessidades do corpo, questões completamente secundárias. Nada disso importa frente ao momento presente, à imersão na natureza e a se tornar parte dela.
O que concretiza essas ideias é sua inabalável paciência. “É da minha alma. Quando você tá no mar e quer ultrapassar as ondas, você tem que entrar naquele movimento. A onda não vai mudar o tempo dela. Você tem que se adaptar ao tempo da onda pra ultrapassar a rebentação. E na fotografia é a mesma coisa”, relata.
A paciência o ajuda a ser um bom fotógrafo, mas não o levou à profissão. A origem de sua história com a fotografia reside em seu espírito viajante: a partir dos 14 anos de idade, impulsionou o paulista a mochilar pelo Brasil. Até começar a fotografar profissionalmente, aos 23 anos, as jornadas rendiam mais textos e poemas do que as fotos tiradas com sua Olimpus Trip. As viagens e a intensa curiosidade pela vida foram as bases para a formação de geólogo – e esta, enfim, a sua ligação posterior com a fotografia.
Para Gambarini, nada é por acaso. E nesse caso não foi mesmo. Quando começou a trabalhar com espeleologia (ciência que estuda cavernas), em 1988, sentiu a necessidade de aprender conceitos de fotografia, de investir em equipamento e de estudar o comportamento da luz com física óptica. Ele nunca fez curso: todo o conhecimento foi construído como autodidata. "Foi quando eu descobri que a alma da fotografia é a luz", pontua. Assim, as imagens das cavernas (e seu futuro) tomaram forma.

Foto de Adriano Gambarini
Em 1994, mostrou suas fotos de viagem de mochila na Bahia para um grupo de amigos. Entre eles, estava a editora de uma revista, que ligou para ele na semana seguinte e o chamou para trabalhar com ela na Pesca Companhia, tirando fotos e viajando 15 dias por mês. “Nunca destinei minha vida a ser fotógrafo. Mas me chamaram porque precisavam de alguém que aguentasse o tranco de ser viajante. E eu gosto dessa dinâmica, dessa loucura", conta.
Em uma de suas visitas aos corredores da editora Abril, estava com o portfólio em mãos quando encontrou, por acaso, um amigo de infância, que trabalhava no departamento jurídico. “Estávamos olhando meus cromos numa mesa de luz, quando ele chamou um senhor para olhar. Sabe aquelas pessoas que parecem anjos que passam pela nossa vida? Eu nem sei quem ele é, e hoje me pergunto se realmente existiu”, lembra. Ao analisar as fotos, o anjo deu seu veredicto: era nítido que as imagens tinham sido feitas pelo mesmo fotógrafo, por causa da luz. Inclinação, sombra e forma eram consistentes e, por isso, ele tinha gostado do resultado.
"Comecei a enxergar minhas fotos. Pensei: vou apostar na mesma linguagem, é a minha linguagem. Se eu entrei na profissão com fotos que eu fiz informalmente, pelo prazer, tá dando certo. E qual é a receita? Minha forma de ver o mundo. Não é ser melhor ou pior do que ninguém. É ser do jeito que você acredita que deva ser", explica.

Foto de Adriano Gambarini
Entrega é um dos ingredientes dessa receita que ele harmoniza com a própria paciência. Não com vistas ao produto final, carregada de pressão e expectativa. Mas rendido ao momento, ao tempo que leva e não poderia, jamais, ser controlado. A busca, então, é por entrar no movimento das ondas e respeitar o ambiente. “Quando eu estou numa cena, fotografando, eu pertenço a ela e interfiro nela de alguma forma. Não acredito no fotógrafo invisível. O ambiente sabe que eu estou ali. A minha energia tá ali. O bicho pode não se importar comigo. E não tem coisa melhor do que ser aceito, é muito bom.”
Se o resultado vai fazer jus à entrega, é outra história. Ele garante que nunca pensa no resultado de antemão, pois o produto final e o que fazer com ele seria outra etapa do processo, uma realidade que pode nem vir a existir.
Desapego e dedicação

Foto de Adriano Gambarini
Uma vez que ele considera que o fracasso está ligado à expectativa, se esta não for criada, não há motivo para se frustrar. “Se não der certo, é um trabalho psicológico”, define. A teoria também foi aplicada quando ficou das 8 da noite às 6 da tarde sem água e sem comida, esperando o cachorro-vinagre sair de um buraco. “Não aguentei e cansei: não fiz a foto. Mas não me sinto frustrado por isso. O prazer desse insucesso é o mesmo. A gente tem que tirar um aprendizado de tudo. Tive o prazer de ficar quieto e consegui ver um bando de macacos-prego passar”, explica, tranquilo.
A outra face da moeda é ver o (duro) trabalho ser recompensado. Foi o caso no início do longo relacionamento que Gambarini teria com National Geographic. Em 1999, ele acompanhou uma expedição à caverna Toca da Boa Vista, na Bahia. Entre os membros do grupo havia um americano patrocinado pela National Geographic Society. “Ele gostou das minhas fotos, porque foi muito investimento, técnica, tempo e filme.” No fim, em 2000, as fotos foram impressas em 10 revistas pelo mundo, incluindo a americana.
Nada é por acaso
Em abril de 2011, a edição especial da água estampou as fotos de Gambarini do raro e arisco pato-mergulhão (Mergus octosetaceus), que apenas sobrevive em ecossistemas ambientalmente equilibrados, com água muito limpa e transparente. “Eu poderia ter feito aquela matéria em um ano. Não bastava, eu não estava satisfeito. Depois de quatro, eu falei: ‘Tá pronto’.”
Em uma das etapas desta longa trajetória, Gambarini ficou, durante quatro dias, a partir das 4 da manhã, preso a uma corda e coberto com uma camuflagem para fotografar uma fêmea saindo do ninho, de manhã, com seus filhotes. Até que ouviu um ruído sutil. Posicionou a câmera e logo apareceu a cabeça do animal. Depois, surgiu um filhotinho por entre suas patas, e os outros saíram atrás. Juntos da mãe desapareceram no barranco. Gambarini conseguira as imagens.

Foto de Adriano Gambarini
Por horas e horas, o fotógrafo teve de permanecer imóvel, com carrapatos colados na barriga, para presenciar a cena. E esse não foi o pior dos perrengues que passou. Em expedições na Amazônia já sofreu com amebas, teve de comer carne de caça e beber água de igarapés para sobreviver. Mas, para ele, tudo bem: isso faz parte da espera, do processo da fotografia e, melhor, de experimentação da vida.
A premissa serve para tudo, até para a placidez de observar o sol se por. “A parte mais bonita do pôr do sol é o pós. É o jogo de cor e luz do sol nas nuvens. Mas as pessoas não esperam pra ver isso, não são amigas do tempo. O ser humano é um pouco ansioso.”
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